Não me manifestei sobre o ocorrido porque precisei me distanciar. Não porque não tenho emoções, por ser fria ou racional demais. É exatamente o contrário. Foi porque senti muito. Como se tivesse sido comigo. E foi. Foi comigo porque sou nascida e criada em comunidade. Foi comigo porque, à duras penas, cursei faculdade, também pública... um curso considerado pouca coisa pela elite dominadora. Foi comigo porque ainda moro em comunidade. Foi comigo porque sempre estudei em escola pública. Porque sou professora e me vi no lugar dos colegas, tentando amenizar o sofrimento e o medo dos alunos. Foi comigo porque tenho amigos e parentes com filhos em idade escolar.
Imaginei-me no lugar deles recebendo a terrível notícia de que não a veria mais... Foi comigo porque um dia fui menina. Tive sonhos. Realizei alguns, outros não. Mas tive a oportunidade de tentar. Oportunidade que foi negada a ela na última quinta-feira. Triste pensar que o Estado interrompeu os sonhos de uma menina... que abreviou sua vida com o que foi uma execução institucionalizada. Triste pensar que, não importam sonhos, trabalhos, conquistas... Seremos sempre considerados pretos favelados prontos a virar estatística. O Estado puxou o gatilho e disparou. As balas partiram da mesma direção. O instrumento do Estado não passa de um pobre levado a pensar que matar outro pobre vai tornar esta cidade um lugar mais justo. Injusto. Enquanto isso, ventríloquos brincam conosco, usando-nos numa guerra inventada para seu bel-prazer. Joguem aos leões! Cortem-lhe a cabeça!
Hoje é um outro dia. Dia de matar mais um. Quem será o escolhido? Nessa loteria da morte, ninguém quer ser o vencedor. Mas, a verdade, é que todos já temos nossos bilhetes. Ao sair para trabalhar, estudar, fazer curso, namorar, brincar... viver! Ou mesmo em casa vendo TV, ao computador ou dormindo... Essa não é uma perda só da família. É uma perda coletiva. Morrem crianças, idosos, adultos, trabalhadores, bandidos, policiais. Mas o rico continua cada vez mais rico. E o pobre cada ver mais pobre. Pobre de motivos para sorrir. Pobre de liberdade. Pobre de sentimentos. Pobre. No entanto, os verdadeiros miseráveis são os que estão a manipular essa carnificina de trás de suas mesas com dedos cruzados, colarinho branco e olhar de superioridade... os donos da situação. O que fazer nesse cenário caótico? SOBREVIVER ! Um dia depois do outro. Até que a próxima bala acerte. Até que mais um dos quatro projéteis derrame sangue e lágrimas. Triste. Muito triste.
Texto inicialmente publicado como nota em minha página do Facebook em 03/04/2017