Na terça-feira de carnaval, quando lá fora todos ainda festejavam, se divertiam, em minha casa eu lia meu exemplar de Poemas e Ensaios de Edgar Allan Poe. Não estava sozinha em casa, mas todos dormiam; tudo estava tranquilo. Era como se estivesse só.
Há pois, duplo silêncio; o do mar e o da praia,
do corpo e da alma; um, mora em deserta região
que erva recente cubra e onde, solene, o atraia
lastimoso saber; onde a recordação
O dispa de terror; seu nome é "nunca mais";
E o silêncio corpóreo. A esse, não temais!
(versos do poema Silêncio)
Não sei bem em que momento, mas percebi que alguma coisa se modificava. Era estranho... Parecia crescer em mim uma presença antes desconhecida. Meus olhos ficaram pesados. Meu corpo, cansado. Senti que a qualquer momento poderia desfalecer.
se limitam a gritar,
em tons frouxos, desiguais,
clamorosos, apelando por clemência ao surdo fogo,
contendendo loucamente com o frenesi do fogo,
que se lança bem mais alto,
que em desejo audaz estua
de, no empenho resoluto de algum salto
(sim! agora ou nunca mais!),
alcançar a fronte pálida da lua!
(versos do poema Os Sinos, parte III)
Poe é intenso. É uma leitura densa; mexe com nossas emoções de maneira misteriosa. Nem bem havia terminado de ler os poemas e senti como se estivesse sendo observada. De algum jeito, não sei bem, aos poucos talvez, uma escuridão tomou forma e foi se empoleirar em algum lugar dentro de mim.
Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,
desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.
“Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular” - então lhe digo -
“não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo,
qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!”
E o Corvo disse: “Nunca mais”.
(versos do poema O Corvo)
Saiu das páginas, de onde estava, sobre o busto de Minerva, diretamente para o meu peito. Ao terminar a leitura, estava ofegante. Olhei para o encosto do sofá e perguntei: “Vou me sentir sozinha novamente?” Ao que a presença inesperada respondeu: “Nunca mais”.
sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,
não há de erguer-se, ai! nunca mais!
(versos do poema O Corvo)
Texto inicialmente publicado como nota em minha página do Facebook em 06/03/2017
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