Este texto é o segundo que escrevo sobre o livro O Agreste Em
Mim. O primeiro, já postado nas redes sociais, tem como objetivo despertar o
desejo para a leitura. Por esse motivo, não me aprofundei com observações sobre
os personagens, os cenários, o enredo, reminiscências de outras obras,
estrutura e passagens importantes do texto. No entanto, farei neste tudo o que
não fiz no anterior.
Começando
pela análise do primeiro capítulo, vemos uma estrutura formada por frases
curtas, algumas com apenas um vocábulo. Essa construção reforça a ideia de
dureza, a dificuldade de andar, de respirar. O texto exemplifica o momento pelo
qual o personagem principal está passando. Ele retorna para sua terra natal,
Pernambuco. Está cansado e ferido.
O cenário é
descrito como “verdejante”. De acordo com a autora, “A terra, com sinais de
vida e os açudes cheios” contrastam com a “secura” no peito do protagonista,
José: “uma alma alquebrada em meu corpo machucado.” O personagem sente duas
dores distintas – uma física (ferimentos, pg 10; hematomas, pg 15) e outra
emocional (distante, do passado, que não cicatrizou).
José, um
homem nordestino, homossexual, foi perseguido na juventude por seus irmãos Rubens
e Levi. Precisou fugir porque tentaram matá-lo. Trabalhou como costureiro no
Rio de Janeiro e ascendeu profissionalmente. Conseguiu dinheiro, alcançou fama
e sucesso. Mas a notoriedade atraiu o mal do qual fugiu. Rubens, seu irmão mais
velho, mandou seu afilhado Antônio ao Rio a fim de enganar e acabar com a vida
de José. O protagonista então é iludido por Antônio, se apaixona por ele, sofre
uma violência e uma grande desilusão. Traído e agredido, José é jurado de morte
pela pessoa que amava, com quem dividia a vida. Esta é a trama principal. As
subtramas da história contribuem para a trama principal e compõem o texto de
maneira inteligente. As subtramas são necessárias e eficientes: a história dos
demais personagens, o relacionamento entre eles, as mentiras, as intrigas, as
revelações. Tudo apresentado de forma bem encadeada com sensibilidade e
brilhantismo.
Continuando
a falar dos personagens, temos o núcleo de José: Dona Ciça, sua mãe; Ritinha, irmã;
os irmãos Rubens e Levi; e o pai, o Velho; Ismael, marido de Ritinha; temos
ainda os demais personagens: Antônio, filho de Fulô, puta, com Janjão, um
matador; Dadinha, puta amiga de Fulô; Herminiano, capanga de Rubens; Dorina,
puta amiga de José; Rosinda, professora e mulher de Levi; Paco, espanhol,
primeiro amante de José.
Os cenários
onde o enredo se passa são basicamente dois: o principal é o agreste
nordestino, em Pernambuco; o outro são as cidades do Rio de Janeiro e de São
Paulo. A história se desenrola no sertão, portanto os lugares de maior
relevância na trama são Fazenda Bonsucesso, Sítio de Ritinha, Casa da Alegria, Fazenda
Serra Linda e mais.
Analisando
outros aspectos da obra, pude perceber ressonâncias da Bíblia Sagrada.
Claramente, a autora se inspirou na história de um personagem homônimo que
sofre com a violência de seus irmãos mais velhos, entre eles também Rubens e
Levi. No texto bíblico, José foi agredido pelos irmãos, jogado em um poço e
vendido aos egípcios que passavam pelo local. Além disso, verifiquei outra
passagem inspirada na Bíblia. Refiro-me à Parábola da Semeadura no Novo
Testamento: “Como semente jogada em pedras que no primeiro raio de sol murcha,
seca. Sem tempo para crescer, só brota e já é ceifada. O tempo, esse ceifador
de sentimentos. Tudo o tempo apaga, até o que nos é mais caro. O tempo quer é
me ver seco. Seco como o estio no agreste. Sol. Poeira. Sede. Sede de vida,
nisso somos iguais, eu e o agreste. Falta brotar a vida na gente. Quando virá
para mim o tempo chuvoso? Talvez já tenha vindo com José e joguei fora.” Pg 22
A autora fez
uso de figuras de linguagem enriquecendo seu texto. Comparações, metáforas,
antíteses e mais dão fluidez e ritmo, aproximando a obra em diversos momentos
da linguagem poética pela abundância imagética. O uso de vocábulos como
“estiagem” e “sede”, assim como a alusão à chuva como contraponto da ideia de
secura fizeram-me recordar das cantigas de amigo do Trovadorismo na Idade Média
onde a água é compreendida como elemento de vida, essencial, e meio para a
plenitude sexual. As considerações sobre a morte e a fome são passagem
belíssimas nas páginas 22 e 23, estabelecendo o estado de espírito de Totonho, ou
Antônio. Pode parecer exagero, mas lembrei de Harry Potter com os usos das
expressões “não-se-sabe-o-quê” e “não-se-sabe-para-quê”. O próprio protagonista
se compara ao cenário. Na página 63 ele diz “Se eu entendesse o que aconteceu, encontraria
um alento para minha alma. Quem sabe amainasse a secura em que me encontro,
esse chão rachado e esturricado que eu virei.” Na mesma página, José fala sobre
florescer e usa a expressão “me senti uma torrente d’água rompendo barreiras e
inundando cidades.” Essa dicotomia está presente em toda a obra.
No livro há uma história secundária
da qual particularmente gostei muito: o mistério sobre a paternidade de
Antônio. A princípio, pensei que ele fosse filho de Levi. Mas ao longo da
narrativa encontramos pistas de que não é assim. Em seguida, pensei ter
finalmente matado a charada: Rubens é o pai de Antônio. Mas não! Um maravilhoso
plot twist nos revela que Antônio é filho de Janjão, matador com quem Fulô não
quis se estabelecer. Todavia, como não poderia ficar na Casa da Alegria estando
grávida sem alguém que bancasse suas despesas, Dadinha sugeriu que ela dissesse
a Rubens que o filho era dele. E assim, sentindo-se de alguma forma responsável
pela criança, Rubens obrigou seu irmão Levi a assumi-lo. Outro motivo que levou
Rubens a aceitar essa artimanha foi o desejo de separar Levi de uma mulher com
quem se envolvia para sua desaprovação. “Se não fosse a possibilidade desse
frangote ser meu filho, eu arrancava essa cara de escárnio.” Pg 78. Rubens então
acolheu Antônio como afilhado. Uma maneira “torta” de assumir a paternidade;
como se tivesse algum tipo de código de conduta. É irônico esse tipo de conduta
levando-se em consideração as tentativas de matar o próprio irmão. Nas páginas
79 e 80, Rubens diz a Antônio que é seu pai. Acrescenta que, por esse motivo,
sempre cuidou dele e de sua mãe. Provoca dizendo que se fez Levi assumir a
criança foi para que não continuasse o romance e “esquecia aquela professorinha
desenxabida.” Mesmo Antônio vê a ironia nas ações de Rubens. Na página 81 ele
diz “é outro a defender a moral e os bons costumes.”
O personagem
Rubens cumpre exemplarmente a função de antagonista. Vemos que ele sente
satisfação em prejudicar os outros. Isso fica muito claro no capítulo “Casa de
Rubens” a partir da página 77. Ele mandou matar José, obrigou Levi a assumir um
filho que não era dele, separou o irmão da mulher com quem se envolvia, disse
para Antônio que é seu pai para irritá-lo. Antônio dá vazão aos sentimentos
pelo padrinho na página 82 quando diz a Rubens “O senhor me dá nojo, é o pior
tipo de gente, capaz de manipular tudo e todos conforme lhe convenha.”
Assim percebemos
que durante a narrativa o perfil de Rubens vai sendo desenhado: preconceituoso,
maldoso, manipulador, violento, ardiloso, perigoso. Uma pessoa que não tem
respeito por nada, nem por ninguém. Alguém que parece não nutrir sentimentos
ou, se os tem, são negativos e prejudiciais para todos em sua volta.
A autora
aborda no livro questões pungentes da sociedade atual – homossexualismo,
violência contra LGBTQIAP+, identidade e aceitação são alguns exemplos. O
momento que dá início ao fortalecimento da identidade do protagonista, essa
afirmação pessoal – a aceitação - é quando José vai ao Santuário, onde
anteriormente foi a casa de Paco (capítulo Casa do espanhol, pg 64). Lá ele se
depara com a história de sua própria vida de uma maneira totalmente inesperada.
É interessante como ouvir a história de sua vida como se fosse de uma outra
pessoa o deixou em condição propícia à reflexão. Ele precisava observar os
fatos objetivamente. Assim, a ida de José a este local proporcionou uma catarse
que impulsionou seu recomeço.
É muito bonita a relação entre José e
a mãe. Ao retornar para Pernambuco, José se recolhe na casa da mãe para se
recuperar. Este é um lugar de aconchego e restauração, tanto que ele pensa
novamente no trabalho como atestam adiante os trechos “voltei a trabalhar” e “a
nova coleção” pg 84. A mãe sempre soube da homossexualidade do filho. E mais
importante: ela sempre o amou independentemente de suas preferências. Ela
acolhe José, cuida de suas feridas físicas, das feridas na alma e o ajuda a
olhar-se. “Filho, esse espelho e nenhum outro é capaz de mostrar o que cada um
é de verdade” pg 82. Esta é uma das citações mais importantes na minha opinião.
Talvez porque grande parte do sofrimento pelo qual os homossexuais passam se
deve ao fato de viver com a dificuldade de assumir-se e o medo de não serem
aceitos, principalmente pela família. José entende que os irmãos e o pai preferiam
ocultá-lo. E este é um sentimento que o persegue “E que até hoje tento
esconder” pg 83. Quando José descobre o despertar sexual com Paco, ele sente
que encontrou a única pessoa com quem não se sentia invisível. Vendo todo o
sofrimento do filho, a mãe se arrepende por ter sido omissa e ela diz isso. “Fui
displicente, permiti ser governada pela amargura. O silêncio e a amargura
juntos nesta casa criando desatino, perseguição e pesar” pg 84.
Essa força que José encontra para se reerguer parece
não cruzar o caminho de outro personagem: seu pai. Acamado, à beira da morte, o
pai de José se sente vazio, “nada me assaltou o peito” pg 87. Esse é um vazio
que o personagem sente desde sempre. É muito triste esse pensamento. O
personagem se sente um desperdício de espaço no mundo. É muito deprimente.
Alguém sem perspectivas, sem sonhos ou desejos na vida. Alguém que simplesmente
aceitou o que foi lhe acontecendo, que nunca escolheu nada. Ele deixou a vida
passar, ou melhor, apenas deixou o tempo passar por sua vida: “Uma lacuna escoando
os dias”, “Que Deus me perdoe, mas estou satisfeito”, “Fui um deserto de sentimentos,
ambições e ações” (pg 87 e 88). É interessante que nem sequer o nome do
personagem é mencionado. Sempre que a autora menciona o pai de José refere-se a
ele apenas como o Velho. Este é um elemento que enfatiza as circunstâncias da
vida, ou não-vida, deste personagem.
A primeira
parte do livro intitulada “Chegadas” cumpre bem a sua função introdutória,
apresentando os personagens mais recorrentes na trama e o enredo principal.
A segunda
parte, “Encontros”, desenvolve a trama de maneira mais dinâmica e ritmada. O
aumento da tensão em cada encontro relevante começa a nos preparar para a parte
final. De todos os encontros nesta parte da narrativa, o mais importante,
sobretudo, é o de José consigo mesmo. É ao se olhar no espelho e para seu
passado que ele encontra sua essência e a força que vai motivar suas ações.
José afirma “Estou descobrindo muita coisa para quem chegou aqui com vontade de
morrer, desejando até me deparar com Rubens e acertar logo as contas” pg 85.
Outro
encontro igualmente importante e tenso é o de José com seu irmão. Rubens
percebe uma mudança em José: “O tempo passou e o moleque que foi corrido daqui
com o rabo entre as pernas, estava mais senhor de si, tinha firmeza na postura”
pg 91. Ver o caçula da família tem um efeito sobre seus sentimentos aumentando
sua ojeriza pelo irmão. Rubens sente e age como se tivesse o direito de zelar
pela reputação da família. O trecho, “a verdade é que sempre estive sozinho nessa
luta de manter limpo o nome Mourão” funciona como justificativa de suas
atitudes questionáveis e até criminosas. Para Rubens, a orientação sexual de
José é uma mancha, uma vergonha. Ele se sente pessoalmente atingido.
Já o
encontro de José com Levi é totalmente diferente. Podemos verificar em Levi uma
predisposição para o diálogo com o irmão. Depois do casamento, sua esposa
exerceu influência positiva em Levi, tanto que ele se afasta de Rubens e começa
a questionar suas ações. O trecho que nos revela o pensamento de Levi sobre
José diz o seguinte: “Não era o menino que habitava minhas recordações. Mesmo
que fosse, agora eu não usava os olhos de meu irmão mais velho, enxergava-o com
os meus, era o que valia” pg 94.
Vários são
os encontros. O terceiro que me chamou a atenção na obra foi o de Antônio com a
mãe. Este encontro prenuncia a terceira e última parte do livro, pois funciona
como um confronto no qual Antônio questiona a mãe sobre o fato de Rubens ser
seu pai ou não. Ao descobrir a invencionice de sua mãe com Dadinha para enganar
Rubens, Antônio achou engraçado seu padrinho ser “ludibriado por duas quengas”.
Dadinha foi a responsável por esse plano.
A terceira
parte do livro intitulada “Confrontos” encerra a trama. É quando o clímax,
preparado com o aumento da tensão na parte anterior, acontece. Pensar em
confronto leva-nos a pensar em embate. Outros sinônimos para este vocábulo
sugerem sempre algo negativo: conflito, disputa, atrito, briga, contenda. No
entanto, nem todo confronto tem resultado nocivo. É nesta parte que se dá a
reconciliação entre José e Levi. “Era bom fazer as pazes com José, aquela birra
do passado não tinha jeito de continuar, não devia nem ter começado” pg 102. Levi
explica ao irmão que agiu de maneira errada influenciado pelo mais velho e que
sua mudança se deve a presença de sua esposa em sua vida. Levi justifica sua
mudança: “Penso que na vida, a gente tem que mudar, procurar ver sempre as
coisas por um outro ponto de vista, não se pode morrer do jeito que se nasceu,
senão, para que a vida?”. Levi acrescenta que deseja a mudança de Rubens, para
o bem dele. Mas isso não acontece.
No capítulo
“A caminho da Casa da Alegria” a partir da página 107, José é incentivado por
sua mãe e Dadinha a fugir de Rubens novamente. Embora neste ponto da narrativa
ele se sinta em condição de enfrentar o irmão mais velho e até a morte, José se
deixa vencer momentaneamente por suas intercessoras e decide fugir, repetindo a
mesma história de anos atrás.
A narrativa
mantém nosso interesse no desenlace da história ao aumentar a tensão para o
último e principal confronto da trama. Mais uma tocaia é planejada por Rubens
durante o cortejo do pai falecido. Dorina ouve o plano e conta para dona Ciça
que, mais uma vez, impede o fratricídio. Outra fuga.
O destino
mostra toda sua força quando Antônio é designado por Dadinha e Fulô a ajudar
José em sua fuga. José não sabia que Antônio era filho de Fulô. Quando o vê,
José põe para fora toda a sua ira, sua frustração e tristeza pela maneira como
foi tratado por Antônio. Grita e o agride com um soco sem que Antônio se
defenda, pois sente que merece aquele tratamento por tudo o que fez. Em seguida,
José desiste da fuga e resolve enfim se encontrar com Rubens e confrontá-lo
finalmente para o bem ou para o mal.
O ritmo na
terceira parte é bem mais acelerado. O enredo prende nossa atenção e não
conseguimos parar de ler até descobrir o desfecho. Na página 116, José percebe
toda a sua força e enfim decide encarar o desafio de confrontar o irmão. É um
momento muito importante para o personagem pela certeza de sua decisão. José
resolve ir ao irmão e acabar de vez com aquela “pendenga” – a sonoridade dessa
palavra é maravilhosa!
O embate
entre os irmãos acontece a partir do capítulo “Igreja da Matriz”. José fala
tudo o que estava engasgado na garganta há vinte anos. Como ambos estão
armados, há um disparo e depois outro. A descrição da cena faz lembrar dos
antigos filmes de faroeste, pelo canário onde se passa e pelo fato dos irmãos
se encararem, como se fosse um duelo. Ambos são feridos. No entanto, José não
resiste e morre. Sem José, tudo se desfaz: “A família se desmanchava como terra
esfarelenta”. Pg 122.
Como José é
um personagem muito fácil para nos identificar, torcemos a seu favor até seu
último suspiro. Apesar de sua morte, sua liberdade fala mais alto. A liberdade
de José grita, ecoa na existência dos demais personagens. Talvez Rubens e os outros
personagens não entendessem a importância de José para suas vidas, a diferença
que fazia em sua volta, as marcas deixadas, seu legado. Mas José entendia seu
lugar no mundo e o afirma em sua última fala “Eu ainda viverei de muitas
maneiras em sua vida, Rubens. Minha morte não será meu esquecimento. Você não
poderá fazer nada!”. Pg 120. Apesar de lamentarmos sua morte, compreendemos que
é um elemento essencial para a narrativa construída. Aqui a liberdade venceu a
morte.
A imagem
final do mandacaru com seus espinhos e flor sintetizam com sensibilidade esta
obra marcante, mostrando que ambos fazem parte um do outro. Eles se
complementam. São como o direito e o avesso. José e Rubens são faces diferentes
de uma mesma moeda. Não existe um sem o outro.
A obra
estruturada sobre essa base dicotômica é construída com uma riqueza imagética e
com uma linguagem poética ao longo da narrativa que ressoa em nossa alma. Ao
fecharmos o livro, ficamos com nossas reflexões e sentimentos, principalmente o
de agradecimento pela oportunidade de ler uma obra simples e ao mesmo tempo tão
tocante. Isso é maravilhoso! Esse luto literário. Guardar o tempo de luto para
enfim desapegar e iniciar outro livro. É sensacional quando fechamos o livro e
o livro permanece no nosso imaginário. O Agreste Em Mim tem esse efeito.
Permanece.