Grata Surpresa

          

       Começo afirmando que a leitura de O Mal do Século de Junior Berts, disponível para aquisição na Amazon, foi uma experiência literária maravilhosa. Costumo ler os clássicos da literatura, pois sempre acho que estou em dívida, que não li tudo o que devia. Às vezes, entretanto, intercalo obras mais recentes para me atualizar. Não conhecia a obra nem o autor, mas quando o próprio entrou em contato comigo sugerindo a leitura, não pude recusar. Encontrar esta história foi uma grata surpresa.

A narrativa em primeira pessoa conta a jornada de Vincent Blessington (nome sugestivo rsrs), um jovem lorde inglês que vive uma vida despreocupada regada a bebedeiras e outros prazeres mundanos enquanto escreve suas peças teatrais. Ele escreve sua história em um livro que é lido pela personagem Sarah, interlocutora do protagonista ao longo do enredo. Enquanto ela lê, tomamos consciência dos acontecimentos na vida de Vincent.

Os fatos narrados em 1911 referem-se a eventos iniciados em 1832 na Inglaterra e, posteriormente, em outros lugares como Veneza. Não vou contar a história de Vincent. Para conhecê-la, você terá que ler. Recomendo que o faça. Você não vai se arrepender!

Continuando... Inserida na fase do ultrarromantismo, a narrativa traz elementos característicos desse período: o exagero sentimental, pessimismo e tédio, fuga da realidade, obsessão pela morte, idealização do amor, subjetivismo e egocentrismo, gosto pelo mórbido e macabro, ironia e sarcasmo, saudosismo e idealização do passado. 

       Assim como ocorre em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o leitor é convidado a interagir com o autor-personagem Vincent e com o autor Junior Berts. O trabalho impecável de ambientação e caracterização e a presença de um humor ácido fazem com que nos sintamos parte integrante da obra desde o início como observador e interlocutor.

Reverenciando grandes escritores e poetas, o livro faz referência a diversas obras e autores: O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, O Corvo de Edgar Allan Poe e Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo. Cita ainda Alice no País das Maravilhas de Charles Lutwidge Dodgson sob o pseudônimo de Lewis Carroll, Victor Hugo, Charles Dickens e Lord Byron, descrito na obra como um amigo próximo de Vincent.

O protagonista é bem construído. Se há alguma dificuldade em se identificar com Vincent, não é difícil compreendê-lo nem sua motivação. Os demais personagens cumprem perfeitamente seu papel na trama, com destaque para Clementina, Erinye, Arctur, Aveline, Briana e Deyvi Thomas.

Embora um pouco lenta nos primeiros capítulos, a história acelera o ritmo a partir da viagem de Vincent, prendendo a atenção do leitor, deixando-nos ansiosos para conferir o que acontece depois. Com muitos momentos emocionantes, tensos, outros ainda aterrorizantes como o capítulo 9 sobre o manicômio - que me fez perder o fôlego - a descrição das cenas, os diálogos rápidos e o encadeamento de ações contribuem para aumentar a expectativa e a avidez. Há momentos bem divertidos em que gargalhei bastante e algumas cenas memoráveis, inesquecíveis mesmo. Somando-se a todos esses aspectos, as revelações e as reviravoltas mantêm-nos aprisionados no mundo e na mente do personagem que busca o seu lugar ao sol num mundo sombrio de maldições, indiferença e vícios.

       Ao contrário do que imaginei ao ler o título da obra, O Mal do Século não é sobre uma doença física que dizimou milhares de pessoas em dado momento da história do mundo; tampouco é sobre um feitiço lançado para amaldiçoar a vida de Vincent. Mas, para descobrir o que é o mal do século, você precisa ler! Só assim vai descobrir o que é e vai perceber que, como é apresentado no livro, persiste até hoje. 

Leitura de Um Perfeito Cavalheiro de Julia Quinn

 


Terminei a leitura do livro Um Perfeito Cavalheiro de Julia Quinn e... gostei com g minúsculo. Dos livros que li até agora, O Duque e Eu e O Visconde Que Me Amava, este terceiro certamente não é o melhor. E o problema, a meu ver, não reside especificamente no Bridgerton da vez, Benedict. São vários os problemas. 


O primeiro deles é que, nas obras anteriores e nas duas temporadas da série disponíveis na Netflix, Benedict é um personagem leve, alguém que possui suas questões internas, mas não se abate ou se deixa ofuscar. Ele tem desejos e aspirações genuínas e não parece se prender às convenções. Até porque, o fardo da posição social como visconde recai sobre seu irmão mais velho, Anthony, personagem central do segundo livro. O Benedict que imaginei se preocuparia um pouco com a questão da diferença de classes entre ele e Sophie, mas não permitiria que isso o impedisse de viver um grande amor. 

A propósito, Sophie vive sua jornada da obscuridade à evidência, da pobreza à riqueza, do ódio sofrido ao amor, nesta releitura do conto de Cinderela. Gostei da personagem porque ela sabe quem é e a qual mundo pertence. Apesar de apaixonada por Benedict, ela não tem grandes expectativas, principalmente depois de perceber que ele não se lembra de tê-la conhecido no baile organizado por sua mãe dois anos antes. 

Embora as passagens que descrevem os encontros amorosos dos dois sejam tão interessantes como nos livros anteriores, acho que o casal não tem muita química. Este é um casal que não funcionou muito bem, na minha humilde opinião. Talvez eu tenha essa impressão pelo fato da autora ter escolhido contar a história a partir do conto. Sei que se trata de uma releitura. 

Além disso, Benedict é um pretendente mais do que perfeito para qualquer jovem. No entanto, ele não é um príncipe encantado. Ele é um homem que cresceu rodeado de amor em uma família extensa que o ensinou a reconhecer os outros ao seu redor. O amor de sua família impediu que ele crescesse como um menino abastado mimado que olha para os outros como se estivessem debaixo das solas de suas botas. Não! Benedict é um ser humano. Essa preocupação do personagem, exagerada ao meu modo de ver, fez com que a narrativa não tivesse fôlego. 

O que quero dizer é que para mim não é muito crível a reação dos personagens. Acredito em Benedict quando ele intervém e ajuda Sophie resgatando-a de Phillip Cavender. Acredito em Sophie quando ela cuida de Benedict que adoece por causa da forte chuva. Mas não acredito quando ela se rende e permanece na casa dos Bridgerton. Não acredito em Benedict quando ele insiste em levá-la para casa de sua mãe depois de recusar ser sua amante. É uma situação bizarra. Ele a salvou de um estupro coletivo para sugerir uma relação extraconjugal e ela não só permaneceu trabalhando para a família dele como inclusive se entregou a ele?!? Acho que a autora errou a mão. 

Discutir sobre as questões internas desses dois personagens, suas motivações e suas escolhas foi totalmente anulado por colocar ambos em uma situação que contradiz os próprios personagens. Podem dizer, por exemplo 'Ah, mas o amor faz isso!'. Será?! Tenho minhas dúvidas. Enfim, talvez eu esteja enganada e tenha feito uma leitura errada dos personagens. Mas fiquei o tempo todo, enquanto lia, pensando que me perdi na floresta. Aquela mencionada no capítulo onze, quando Sophie espia Benedict nu banhando-se no lago. Fiquei ali, espiando os dois e depois me perdi. Não encontrei o caminho para o Meu Chalé e, tudo o que posso dizer é que, quando encontrei, Benedict já havia casado com Sophie, tinham juntos três filhos e aguardavam o quarto do casal, torcendo para ser uma menina dessa vez.


Lido em Janeiro/2024

O agreste em mim: uma leitura



                Este texto é o segundo que escrevo sobre o livro O Agreste Em Mim. O primeiro, já postado nas redes sociais, tem como objetivo despertar o desejo para a leitura. Por esse motivo, não me aprofundei com observações sobre os personagens, os cenários, o enredo, reminiscências de outras obras, estrutura e passagens importantes do texto. No entanto, farei neste tudo o que não fiz no anterior.

            Começando pela análise do primeiro capítulo, vemos uma estrutura formada por frases curtas, algumas com apenas um vocábulo. Essa construção reforça a ideia de dureza, a dificuldade de andar, de respirar. O texto exemplifica o momento pelo qual o personagem principal está passando. Ele retorna para sua terra natal, Pernambuco. Está cansado e ferido.

            O cenário é descrito como “verdejante”. De acordo com a autora, “A terra, com sinais de vida e os açudes cheios” contrastam com a “secura” no peito do protagonista, José: “uma alma alquebrada em meu corpo machucado.” O personagem sente duas dores distintas – uma física (ferimentos, pg 10; hematomas, pg 15) e outra emocional (distante, do passado, que não cicatrizou).

            José, um homem nordestino, homossexual, foi perseguido na juventude por seus irmãos Rubens e Levi. Precisou fugir porque tentaram matá-lo. Trabalhou como costureiro no Rio de Janeiro e ascendeu profissionalmente. Conseguiu dinheiro, alcançou fama e sucesso. Mas a notoriedade atraiu o mal do qual fugiu. Rubens, seu irmão mais velho, mandou seu afilhado Antônio ao Rio a fim de enganar e acabar com a vida de José. O protagonista então é iludido por Antônio, se apaixona por ele, sofre uma violência e uma grande desilusão. Traído e agredido, José é jurado de morte pela pessoa que amava, com quem dividia a vida. Esta é a trama principal. As subtramas da história contribuem para a trama principal e compõem o texto de maneira inteligente. As subtramas são necessárias e eficientes: a história dos demais personagens, o relacionamento entre eles, as mentiras, as intrigas, as revelações. Tudo apresentado de forma bem encadeada com sensibilidade e brilhantismo.

            Continuando a falar dos personagens, temos o núcleo de José: Dona Ciça, sua mãe; Ritinha, irmã; os irmãos Rubens e Levi; e o pai, o Velho; Ismael, marido de Ritinha; temos ainda os demais personagens: Antônio, filho de Fulô, puta, com Janjão, um matador; Dadinha, puta amiga de Fulô; Herminiano, capanga de Rubens; Dorina, puta amiga de José; Rosinda, professora e mulher de Levi; Paco, espanhol, primeiro amante de José.

            Os cenários onde o enredo se passa são basicamente dois: o principal é o agreste nordestino, em Pernambuco; o outro são as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. A história se desenrola no sertão, portanto os lugares de maior relevância na trama são Fazenda Bonsucesso, Sítio de Ritinha, Casa da Alegria, Fazenda Serra Linda e mais.

            Analisando outros aspectos da obra, pude perceber ressonâncias da Bíblia Sagrada. Claramente, a autora se inspirou na história de um personagem homônimo que sofre com a violência de seus irmãos mais velhos, entre eles também Rubens e Levi. No texto bíblico, José foi agredido pelos irmãos, jogado em um poço e vendido aos egípcios que passavam pelo local. Além disso, verifiquei outra passagem inspirada na Bíblia. Refiro-me à Parábola da Semeadura no Novo Testamento: “Como semente jogada em pedras que no primeiro raio de sol murcha, seca. Sem tempo para crescer, só brota e já é ceifada. O tempo, esse ceifador de sentimentos. Tudo o tempo apaga, até o que nos é mais caro. O tempo quer é me ver seco. Seco como o estio no agreste. Sol. Poeira. Sede. Sede de vida, nisso somos iguais, eu e o agreste. Falta brotar a vida na gente. Quando virá para mim o tempo chuvoso? Talvez já tenha vindo com José e joguei fora.” Pg 22

            A autora fez uso de figuras de linguagem enriquecendo seu texto. Comparações, metáforas, antíteses e mais dão fluidez e ritmo, aproximando a obra em diversos momentos da linguagem poética pela abundância imagética. O uso de vocábulos como “estiagem” e “sede”, assim como a alusão à chuva como contraponto da ideia de secura fizeram-me recordar das cantigas de amigo do Trovadorismo na Idade Média onde a água é compreendida como elemento de vida, essencial, e meio para a plenitude sexual. As considerações sobre a morte e a fome são passagem belíssimas nas páginas 22 e 23, estabelecendo o estado de espírito de Totonho, ou Antônio. Pode parecer exagero, mas lembrei de Harry Potter com os usos das expressões “não-se-sabe-o-quê” e “não-se-sabe-para-quê”. O próprio protagonista se compara ao cenário. Na página 63 ele diz “Se eu entendesse o que aconteceu, encontraria um alento para minha alma. Quem sabe amainasse a secura em que me encontro, esse chão rachado e esturricado que eu virei.” Na mesma página, José fala sobre florescer e usa a expressão “me senti uma torrente d’água rompendo barreiras e inundando cidades.” Essa dicotomia está presente em toda a obra.

            No livro há uma história secundária da qual particularmente gostei muito: o mistério sobre a paternidade de Antônio. A princípio, pensei que ele fosse filho de Levi. Mas ao longo da narrativa encontramos pistas de que não é assim. Em seguida, pensei ter finalmente matado a charada: Rubens é o pai de Antônio. Mas não! Um maravilhoso plot twist nos revela que Antônio é filho de Janjão, matador com quem Fulô não quis se estabelecer. Todavia, como não poderia ficar na Casa da Alegria estando grávida sem alguém que bancasse suas despesas, Dadinha sugeriu que ela dissesse a Rubens que o filho era dele. E assim, sentindo-se de alguma forma responsável pela criança, Rubens obrigou seu irmão Levi a assumi-lo. Outro motivo que levou Rubens a aceitar essa artimanha foi o desejo de separar Levi de uma mulher com quem se envolvia para sua desaprovação. “Se não fosse a possibilidade desse frangote ser meu filho, eu arrancava essa cara de escárnio.” Pg 78. Rubens então acolheu Antônio como afilhado. Uma maneira “torta” de assumir a paternidade; como se tivesse algum tipo de código de conduta. É irônico esse tipo de conduta levando-se em consideração as tentativas de matar o próprio irmão. Nas páginas 79 e 80, Rubens diz a Antônio que é seu pai. Acrescenta que, por esse motivo, sempre cuidou dele e de sua mãe. Provoca dizendo que se fez Levi assumir a criança foi para que não continuasse o romance e “esquecia aquela professorinha desenxabida.” Mesmo Antônio vê a ironia nas ações de Rubens. Na página 81 ele diz “é outro a defender a moral e os bons costumes.”

            O personagem Rubens cumpre exemplarmente a função de antagonista. Vemos que ele sente satisfação em prejudicar os outros. Isso fica muito claro no capítulo “Casa de Rubens” a partir da página 77. Ele mandou matar José, obrigou Levi a assumir um filho que não era dele, separou o irmão da mulher com quem se envolvia, disse para Antônio que é seu pai para irritá-lo. Antônio dá vazão aos sentimentos pelo padrinho na página 82 quando diz a Rubens “O senhor me dá nojo, é o pior tipo de gente, capaz de manipular tudo e todos conforme lhe convenha.”

            Assim percebemos que durante a narrativa o perfil de Rubens vai sendo desenhado: preconceituoso, maldoso, manipulador, violento, ardiloso, perigoso. Uma pessoa que não tem respeito por nada, nem por ninguém. Alguém que parece não nutrir sentimentos ou, se os tem, são negativos e prejudiciais para todos em sua volta.

            A autora aborda no livro questões pungentes da sociedade atual – homossexualismo, violência contra LGBTQIAP+, identidade e aceitação são alguns exemplos. O momento que dá início ao fortalecimento da identidade do protagonista, essa afirmação pessoal – a aceitação - é quando José vai ao Santuário, onde anteriormente foi a casa de Paco (capítulo Casa do espanhol, pg 64). Lá ele se depara com a história de sua própria vida de uma maneira totalmente inesperada. É interessante como ouvir a história de sua vida como se fosse de uma outra pessoa o deixou em condição propícia à reflexão. Ele precisava observar os fatos objetivamente. Assim, a ida de José a este local proporcionou uma catarse que impulsionou seu recomeço.

É muito bonita a relação entre José e a mãe. Ao retornar para Pernambuco, José se recolhe na casa da mãe para se recuperar. Este é um lugar de aconchego e restauração, tanto que ele pensa novamente no trabalho como atestam adiante os trechos “voltei a trabalhar” e “a nova coleção” pg 84. A mãe sempre soube da homossexualidade do filho. E mais importante: ela sempre o amou independentemente de suas preferências. Ela acolhe José, cuida de suas feridas físicas, das feridas na alma e o ajuda a olhar-se. “Filho, esse espelho e nenhum outro é capaz de mostrar o que cada um é de verdade” pg 82. Esta é uma das citações mais importantes na minha opinião. Talvez porque grande parte do sofrimento pelo qual os homossexuais passam se deve ao fato de viver com a dificuldade de assumir-se e o medo de não serem aceitos, principalmente pela família. José entende que os irmãos e o pai preferiam ocultá-lo. E este é um sentimento que o persegue “E que até hoje tento esconder” pg 83. Quando José descobre o despertar sexual com Paco, ele sente que encontrou a única pessoa com quem não se sentia invisível. Vendo todo o sofrimento do filho, a mãe se arrepende por ter sido omissa e ela diz isso. “Fui displicente, permiti ser governada pela amargura. O silêncio e a amargura juntos nesta casa criando desatino, perseguição e pesar” pg 84.

             Essa força que José encontra para se reerguer parece não cruzar o caminho de outro personagem: seu pai. Acamado, à beira da morte, o pai de José se sente vazio, “nada me assaltou o peito” pg 87. Esse é um vazio que o personagem sente desde sempre. É muito triste esse pensamento. O personagem se sente um desperdício de espaço no mundo. É muito deprimente. Alguém sem perspectivas, sem sonhos ou desejos na vida. Alguém que simplesmente aceitou o que foi lhe acontecendo, que nunca escolheu nada. Ele deixou a vida passar, ou melhor, apenas deixou o tempo passar por sua vida: “Uma lacuna escoando os dias”, “Que Deus me perdoe, mas estou satisfeito”, “Fui um deserto de sentimentos, ambições e ações” (pg 87 e 88). É interessante que nem sequer o nome do personagem é mencionado. Sempre que a autora menciona o pai de José refere-se a ele apenas como o Velho. Este é um elemento que enfatiza as circunstâncias da vida, ou não-vida, deste personagem.

            A primeira parte do livro intitulada “Chegadas” cumpre bem a sua função introdutória, apresentando os personagens mais recorrentes na trama e o enredo principal.

            A segunda parte, “Encontros”, desenvolve a trama de maneira mais dinâmica e ritmada. O aumento da tensão em cada encontro relevante começa a nos preparar para a parte final. De todos os encontros nesta parte da narrativa, o mais importante, sobretudo, é o de José consigo mesmo. É ao se olhar no espelho e para seu passado que ele encontra sua essência e a força que vai motivar suas ações. José afirma “Estou descobrindo muita coisa para quem chegou aqui com vontade de morrer, desejando até me deparar com Rubens e acertar logo as contas” pg 85.

            Outro encontro igualmente importante e tenso é o de José com seu irmão. Rubens percebe uma mudança em José: “O tempo passou e o moleque que foi corrido daqui com o rabo entre as pernas, estava mais senhor de si, tinha firmeza na postura” pg 91. Ver o caçula da família tem um efeito sobre seus sentimentos aumentando sua ojeriza pelo irmão. Rubens sente e age como se tivesse o direito de zelar pela reputação da família. O trecho, “a verdade é que sempre estive sozinho nessa luta de manter limpo o nome Mourão” funciona como justificativa de suas atitudes questionáveis e até criminosas. Para Rubens, a orientação sexual de José é uma mancha, uma vergonha. Ele se sente pessoalmente atingido.

            Já o encontro de José com Levi é totalmente diferente. Podemos verificar em Levi uma predisposição para o diálogo com o irmão. Depois do casamento, sua esposa exerceu influência positiva em Levi, tanto que ele se afasta de Rubens e começa a questionar suas ações. O trecho que nos revela o pensamento de Levi sobre José diz o seguinte: “Não era o menino que habitava minhas recordações. Mesmo que fosse, agora eu não usava os olhos de meu irmão mais velho, enxergava-o com os meus, era o que valia” pg 94.

            Vários são os encontros. O terceiro que me chamou a atenção na obra foi o de Antônio com a mãe. Este encontro prenuncia a terceira e última parte do livro, pois funciona como um confronto no qual Antônio questiona a mãe sobre o fato de Rubens ser seu pai ou não. Ao descobrir a invencionice de sua mãe com Dadinha para enganar Rubens, Antônio achou engraçado seu padrinho ser “ludibriado por duas quengas”. Dadinha foi a responsável por esse plano.

            A terceira parte do livro intitulada “Confrontos” encerra a trama. É quando o clímax, preparado com o aumento da tensão na parte anterior, acontece. Pensar em confronto leva-nos a pensar em embate. Outros sinônimos para este vocábulo sugerem sempre algo negativo: conflito, disputa, atrito, briga, contenda. No entanto, nem todo confronto tem resultado nocivo. É nesta parte que se dá a reconciliação entre José e Levi. “Era bom fazer as pazes com José, aquela birra do passado não tinha jeito de continuar, não devia nem ter começado” pg 102. Levi explica ao irmão que agiu de maneira errada influenciado pelo mais velho e que sua mudança se deve a presença de sua esposa em sua vida. Levi justifica sua mudança: “Penso que na vida, a gente tem que mudar, procurar ver sempre as coisas por um outro ponto de vista, não se pode morrer do jeito que se nasceu, senão, para que a vida?”. Levi acrescenta que deseja a mudança de Rubens, para o bem dele. Mas isso não acontece.

            No capítulo “A caminho da Casa da Alegria” a partir da página 107, José é incentivado por sua mãe e Dadinha a fugir de Rubens novamente. Embora neste ponto da narrativa ele se sinta em condição de enfrentar o irmão mais velho e até a morte, José se deixa vencer momentaneamente por suas intercessoras e decide fugir, repetindo a mesma história de anos atrás.

            A narrativa mantém nosso interesse no desenlace da história ao aumentar a tensão para o último e principal confronto da trama. Mais uma tocaia é planejada por Rubens durante o cortejo do pai falecido. Dorina ouve o plano e conta para dona Ciça que, mais uma vez, impede o fratricídio. Outra fuga.

            O destino mostra toda sua força quando Antônio é designado por Dadinha e Fulô a ajudar José em sua fuga. José não sabia que Antônio era filho de Fulô. Quando o vê, José põe para fora toda a sua ira, sua frustração e tristeza pela maneira como foi tratado por Antônio. Grita e o agride com um soco sem que Antônio se defenda, pois sente que merece aquele tratamento por tudo o que fez. Em seguida, José desiste da fuga e resolve enfim se encontrar com Rubens e confrontá-lo finalmente para o bem ou para o mal.

            O ritmo na terceira parte é bem mais acelerado. O enredo prende nossa atenção e não conseguimos parar de ler até descobrir o desfecho. Na página 116, José percebe toda a sua força e enfim decide encarar o desafio de confrontar o irmão. É um momento muito importante para o personagem pela certeza de sua decisão. José resolve ir ao irmão e acabar de vez com aquela “pendenga” – a sonoridade dessa palavra é maravilhosa!

            O embate entre os irmãos acontece a partir do capítulo “Igreja da Matriz”. José fala tudo o que estava engasgado na garganta há vinte anos. Como ambos estão armados, há um disparo e depois outro. A descrição da cena faz lembrar dos antigos filmes de faroeste, pelo canário onde se passa e pelo fato dos irmãos se encararem, como se fosse um duelo. Ambos são feridos. No entanto, José não resiste e morre. Sem José, tudo se desfaz: “A família se desmanchava como terra esfarelenta”. Pg 122.

            Como José é um personagem muito fácil para nos identificar, torcemos a seu favor até seu último suspiro. Apesar de sua morte, sua liberdade fala mais alto. A liberdade de José grita, ecoa na existência dos demais personagens. Talvez Rubens e os outros personagens não entendessem a importância de José para suas vidas, a diferença que fazia em sua volta, as marcas deixadas, seu legado. Mas José entendia seu lugar no mundo e o afirma em sua última fala “Eu ainda viverei de muitas maneiras em sua vida, Rubens. Minha morte não será meu esquecimento. Você não poderá fazer nada!”. Pg 120. Apesar de lamentarmos sua morte, compreendemos que é um elemento essencial para a narrativa construída. Aqui a liberdade venceu a morte.

            A imagem final do mandacaru com seus espinhos e flor sintetizam com sensibilidade esta obra marcante, mostrando que ambos fazem parte um do outro. Eles se complementam. São como o direito e o avesso. José e Rubens são faces diferentes de uma mesma moeda. Não existe um sem o outro.

            A obra estruturada sobre essa base dicotômica é construída com uma riqueza imagética e com uma linguagem poética ao longo da narrativa que ressoa em nossa alma. Ao fecharmos o livro, ficamos com nossas reflexões e sentimentos, principalmente o de agradecimento pela oportunidade de ler uma obra simples e ao mesmo tempo tão tocante. Isso é maravilhoso! Esse luto literário. Guardar o tempo de luto para enfim desapegar e iniciar outro livro. É sensacional quando fechamos o livro e o livro permanece no nosso imaginário. O Agreste Em Mim tem esse efeito. Permanece. 

 

O Agreste Em Mim: sensível e necessário


Durante o mês de novembro, escolhi ler o livro de uma amiga muito querida. Alguém que admiro muito. O Agreste Em Mim de Rô Arruda provou ser da capa à contracapa um livro sensível, tocante e extremamente necessário, Realmente importante para qualquer pessoa que deseja estar antenada com os temas atuais e, principalmente ser mais HUMANO. 

Com 123 páginas, o livro é formado por três partes centrais Chegadas, Encontros e Confrontos, divididos em capítulos curtos. A linguagem é fácil, com destaque para os vocábulos regionais que enriquecem a obra trazendo a sonoridade característica do nordeste brasileiro. Sem falar da capa! De muito bom gosto, apresenta a imagem do solo árido, seco, rachado do agreste. Aqui o título já sugere que essa sequidão não faz parte apenas do cenário, mas do estado de espírito dos personagens da história. Destacado com uma cor mais clara há uma silhueta masculina sinalizando que um crime acontece; um homicídio. Não sei se o papel é reciclado, mas gostei muito da escolha para a edição. É agradável para a leitura e combina muito bem com a capa. 

A narrativa em primeira pessoa é inovadora para mim ao permitir as vozes de todos os personagens principais do enredo. Cada ponto de vista cria uma estrutura que contrasta com o lugar e com o título: as vozes funcionam como rios se encontrando, confluindo todos para uma mesma direção, para contar uma única história.

Na trama central temos José, nordestino, nascido em Pernambuco, precisou sair de sua terra natal para o Rio de Janeiro para fugir da perseguição de seu irmão mais velho. Rubens jurou matar José ao descobrir sua homossexualidade. Ajudado por sua mãe, irmã e por uma amiga, José foge e vai trabalhar como costureiro no Rio de Janeiro. Reconhecido por seu trabalho, fica famoso e passa a ser conhecido como Jô Salgado ao ter suas produções em destaque nos grandes desfiles de moda. Mas José vai do céu ao inferno ao passar por uma grande decepção em sua vida. Uma traição de quem não esperava; pior, de quem amava. Decide então voltar para sua terra para se recuperar das feridas físicas e emocionais. Neste retorno às origens, José se reencontra com a família, com o passado e consigo mesmo. 

Não quero estragar a leitura, por isso estou fazendo um esforço muito grande aqui para não falar mais da trama. O que posso falar é que no livro, Rô Arruda traz temas como homossexualidade, preconceito, violência contra as pessoas LGBTQIA+, conflitos familiares, descobertas, aceitação e amor próprio. Além disso, a história conta ainda com intrigas, revelações e reviravoltas que vão manter seus olhos bem fixos nas páginas até o final. Super recomendo sua leitura!

"Quando a vida resolve cobrar nosso destino, a gente se perde e se encontra" (página 21).

O mistério da sala interditada



Parecia mais um final de tarde tranquilo. Todos os dias, no mesmo horário, ela passeava pelas salas e pelos corredores em busca do que fora deixado para trás pela turba de alunos barulhentos. Papéis de bala, copos de Guaravita, pacotes de biscoitos vazios sempre lhe rendiam alguma energia. Porém, algo estava diferente. Ela não estava sozinha.

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Tudo o que ela coletara de uma das salas era o suficiente para todo o seu grupo, pensou. E ali estava ela. Aproveitando de toda a doçura que os estudantes não queriam mais. Ao sair de uma sala, percebeu uma movimentação atrás de si, no banheiro. Alguém ignorara as ordens e ficara para trás no andar. O que fazia esse alguém ali? Naquele momento? Ela pensou que, o melhor, seria sumir o mais rápido possível. Não ficaria para descobrir. Contudo, quando se preparava para partir, sentiu-se congelar. Estava sendo cuidadosamente observada. O alguém do banheiro já a avistara e partiu em sua direção. E agora? O que ela deveria fazer?

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Extremamente assustada, ela correu e esqueceu-se da sala em que estava. Avançou pelo corredor, pensando em como poderia escapar desse alguém mal-intencionado. Entrou na próxima sala e pensou tê-lo despistado. Mas não. Quando olhou para cima, eis que estava prestes a esmagá-la aquele que seria o último que ela veria. 

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No dia seguinte, flashes, fotos, uma sala fechada... interditada. Cena de um crime. Palco do último suspiro dela, que antes passeava feliz pelos ambientes da escola. Quem teria sido o cruel a tirar a vida de um ser tão inofensivo quanto... aquela barata! As investigações continuam, mas nenhum suspeito ainda foi identificado. As autoridades têm esperança de encontrar alguma pista no sistema de câmeras e monitoramento instalado pela escola. Será que um dia descobriremos quem cometeu esse baraticídio? Contamos com a colaboração de todos que puderem dar qualquer informação para elucidar este caso.

Produzida e apresentada em 04/09/15 para a turma 1703 da Escola Municipal Cardeal Leme 




Texto inicialmente publicado como nota em minha página do Facebook em 5 de dezembro de 2017.